BANDEIRA DOIS (Pequeno Romance Policial)

Capítulo I

Depois que os malditos moto-boys invadiram o mercado não se faz mais uma corrida por aqui. A situação em Pelotas já estava difícil para os taxistas, agora então... Não sei quanto tempo faz que não fumo uma da boa e “desavermelhar” o cheque especial tornou-se uma missão totalmente impossível para mim. Ah, minha doce e úmida Pelotas se eu não te amasse tanto assim...
- E aí mano véio?
- E aí Giggio?
O Giggio era meu colega no ponto. Meio caretão, mas um grande amigo. Trabalhava pra caralho, às vezes eu achava que ele não tinha casa e morava no ponto de táxi. Era sempre o primeiro a chegar e o último a sair.
- E então Giggio, que tal aquela gatinha que tu levou pra rodoviária?
- Tu é mesmo um tarado cara, a mina devia ter uns dezesseis anos!
- Idade certa pra gostar de homem mais velho. Qual é Giggio?
- Tu sabe muito bem que sou um cara comprometido, eu e a Débora vamos nos casar ainda este ano.
- Mas Giggio a Débora é prostituta, tu ficou maluco?
- Além de tarado tu é preconceituoso mano véio. Ela vai abandonar a profissão tá. Assim que isto acontecer eu vou vender o táxi. Depois que surgiram os moto-boys a coisa tá muito ruim por aqui.
- Ah é? Tu sem o táxi e a Débora sem dar. Vão viver de quê?
- Mano véio se eu não fosse tão teu amigo... Vamos abrir uma padaria no interior, talvez em Tapes. – sempre chamávamos as cidades menores de interior, como se Pelotas não fosse.
- Maluco é apelido pra ti Giggio.
Bom ao menos se a Débora ficasse tanto tempo no “ponto” quanto o Giggio certamente tinha um dinheirão guardado. Duvido muito. O Giggio era uma boa pessoa, mas uma prostituta convenhamos.
- Este ano quero ver se faturo uns trocados a mais na Fenadoce mano véio!
- Tu viu só quem eles vão trazer este ano?
- Aquela coxuda que apareceu domingo no Faustão né?
- Isso mesmo a Mary Master em pessoa vem no Rio Grande do Sul, e somente pra fazer um show exclusivo em Pelotas dá pra acreditar?
- Pra nós é bom né mano véio?
- Claro Giggio, e o show já é agora no final do mês. A cidade vai ficar em polvorosa. Tomara que chova assim os moto-boys se fodem e nós ganhamos.
- Olha mano véio, eu acho essa tal Mary Master uma vagabunda. Imitação brasileira e barata da Madonna. Não pagaria um centavo para assistir um show dela.
Vagabunda? Depois eu que era preconceituoso. O Giggio não tinha jeito mesmo.
- Tu pode achá o que tu quisé Giggio, mas que Mary Master é o maior nome da música Pop no momento isso não dá pra negar, e além de ser bem mais gostosa que a Madonna, ela não faz ponto na Praça Coronel Pedro Osório.
- Mano véio, se eu não fosse tão teu amigo...
O cotidiano no ponto de táxi era sempre assim. Discutíamos política, futebol, mulheres, etc. Ninguém concordava com ninguém, mas todos se entendiam. Diariamente a primeira coisa que eu fazia era comprar o jornal Correio da Manhã na banca da Cinira. A Cinira tinha sido minha namorada há muito tempo, e até hoje pegava no meu pé. Sujeitinha xarope.
- Bom dia Cinira, me dá o Correio da Manhã.
- Bom dia Pimpolho, como vão essas coxas gostosas?
A Cinira nunca parou de me chamar por este apelido ridículo desde que rompemos, confesso que sempre me deixa irritado. Acho até que brigamos por isso. Não lembro. Ela era uma chata e tanto.
- Para com essas brincadeiras Cinira, tu sabe muito bem que eu não gosto.
- Ah, Pimpolho, eu sei direitinho do que tu gosta!
- Sai da minha aba Cinira, me dá logo o Correio da Manhã e vê se te liga.
- Claro Pimpolho, mas não faz esse beicinho senão eu me apaixono.
O Correio da Manhã só falava do show do ano. Mary Master e banda pela primeira vez no Rio Grande do Sul e somente em Pelotas. Havia uma entrevista exclusiva com Mariane Mathias, empresária e confidente de Mary Master. Tinha também um pôster do guitarrista da banda, um tal de Edward Plug que segundo fofocas da imprensa era amante de Mary. Enfim, Pelotas só falava nesse assunto. Eu particularmente sempre preferi Rock Progressivo e MPB, mas as canções dela até que eram bem legais, além de ter uma produção impecável. Mary Master tornou-se praticamente um símbolo sexual no Brasil. Era difícil alguém não gostar dela. No fim da tarde apareceu no ponto uma repórter do Correio da Manhã, fazendo uma matéria sobre a entrada do moto-táxi no mercado. Claro que todos desabafaram e choraram suas mágoas crucificando os moto-boys, aqueles filhos da puta. Ao fim das entrevistas acabei levando a moça em casa. O nome dela era Ângela. Era linda. Me deu o telefone e pediu que eu ligasse. Disse que estava ansiosa para ver o show da Mary Master, e tão logo terminasse a cobertura do evento, viajaria até Porto Alegre para entrevistar o Fito Paez que começava uma nova tournê na capital gaúcha, depois faria um curso sobre marketing antes de retornar a Pelotas. Senti que tava pra mim. E tava mesmo. Os dias se passaram e nos reencontramos várias vezes. Que gata fascinante. Acabamos nos envolvendo, nada sério. Meu estilo sempre foi de não me prender a ninguém jamais. Cada um na sua é a regra. Ficar namorando firme uma pessoa definitivamente nunca foi uma boa idéia. A menos que fosse com uma mulher assim feito a Ângela...



Capítulo II

Finalmente chegou o grande dia do show de Mary Master e banda. Infelizmente não estava chovendo, mas mesmo assim a noite prometia. Os ônibus estavam em greve a dois dias devido a um problema com a Prefeitura, se não me engano algo referente à catraca eletrônica. Para chegar no Centro de Eventos somente de carro e como naquele horário trabalhávamos com bandeira dois, cinqüenta por cento a mais de lucro já era garantido. Exatamente às onze horas se aproximou um garotão com jeito de skin head e totalmente chapado. Era óbvio que ele ia para o show.
- Aí tio, quanto é a corrida até o Centro de Eventos?
- Te faço por quinze pratas meu guri.
- Tudo isso!!!
- Nesse horário é bandeira dois, não posso fazer nada.
- Vamo nessa então, mas que robalhera hein tio?
Era difícil contar quantos piercings tinha na cara da criatura, além das tatuagens horríveis que cobriam o magrelo. O rádio sintonizado na Atlântida FM tocava os últimos sucessos da Mary Master e ele chacoalhava a cabeça feito um retardado no banco de trás. O fedor à maconha já tava quase me chapando também. E eu que não fumava no carro para não deixar cheiro no estofamento. Essa gurizada é foda. Resolvi acelerar para me livrar logo daquela espécie rara de doido.
- Aí tio, pisa fundo! Yeah!
O pior de tudo é que o simplório gostou. Aliás, o pior de tudo foi a limousine que apareceu do nada no meio da Bento Gonçalves. Enterrei o pé no freio, tentei desviar, mas era impossível não bater. Foi uma senhora porrada. Por pouco não invadi o Colégio Pelotense. Meu táxi destruído e a traseira da limousine também, ao menos parecia que ninguém estava ferido.
- Tudo bem aí atrás meu guri?
- Massa tio, tô dez! Foi irado aííííííí... mas o teu carro se fudeu. – sorriu o abestalhado.
O motorista que saiu da limousine parecia o Schwarzenegger. Era um armário e não tinha cara de bons amigos. Mas eu tinha a razão, portanto não me intimidei.
- Pô qual é cara? Como é que tu me entra assim na Avenida? Olha só o meu táxi, quem é que vai pagar o estrago?
- Estamos atrasados, além do mais o senhor sabe com quem está falando?
- Não me interessa, alguém tem que pagar o meu prejuízo rapaz! – já que o grandão não se alterou resolvi falar mais alto.
- O senhor pode ficar tranqüilo que amanhã bem cedo nós resolvemos isso. Agora eu preciso ir, pois estamos atrasados.
- Amanhã uma ova! Eu nem te conheço! Pensa que eu sou trouxa? Vamos chamar a polícia e registrar essa tua barbeiragem agora mesmo rapaz.
- Polícia não tio. – disse aquela tatuagem adolescente escondida numa montanha de piercings e medo.
- Acho melhor o senhor manter a calma por que...
Antes que o gigante terminasse a frase a porta de trás da limousine abriu e surgiu ela...
- Não pode ser! – gritaram os piercings
- Volte para o carro madame, eu resolvo isto.
- Não pode ser!
Mas era. A própria Mary Master em pessoa. Linda, maravilhosa, um tesão de mulher. Gisele Bündchen ainda ia ter muito que malhar para ficar parecida com ela. Dizem que ninguém é perfeito, mas certamente Mary Master era a exceção.
- Deixe comigo Carlos, você não tem um pingo de sensibilidade para estas coisas. – disse ela com aquela voz rouca e sensual que estávamos acostumados a ouvir no rádio.
- Sempre quis te conhecer! – atrapalhava o emaconhado.
Num primeiro momento fiquei meio estático, até lembrar que se tratava do meu táxi. Mas antes que eu continuasse a discussão ela falou.
- Desculpe a indelicadeza e a barbeiragem do Carlos, estamos atrasados para o show e eu pedi que ele corresse. Como não conhece bem a cidade deu no que deu.
- Então co-como podemos resolver isto? – gaguejei olhando para as pernas dela.
- Amanhã bem cedo minha empresária vai lhe dar outro carro novinho em folha. Me deixe seu telefone, e pode confiar. Tenho uma imagem a zelar.
- Dá pra autografar a minha camiseta! – insistiram os piercings.
- Vou co-confiar em ti, hein?! – regaguejei olhando para os peitos dela.
- Você não vai se decepcionar, prometo ser grata. – disse ela já entrando na limousine com a traseira deformada. A traseira da limousine é claro, porque a de Mary era uma verdadeira obra de arte.
E foi o que aconteceu. O gurizão ficou tão feliz que agradeceu o acidente e me deu vinte e cinco reais, depois seguiu para o show de carona na limousine de Mary, imaginem só. Não sei porque mas achei por bem acreditar em Mary Master. Talvez aquela beleza hipnótica estivesse me fazendo de idiota. Os artistas não são flor que se cheire, pensei. Ela não ia lembrar de mim. Chamei o guincho para remover o que sobrou do meu táxi e segui a pé pela Bento. No caminho de casa liguei para a Ângela, que por sorte já tinha terminado sua matéria sobre o show. Nos encontramos e fomos jantar no Lobão. Contei para ela tudo que aconteceu e ela anexou na matéria, é claro. Conversamos muito. Quase toda a noite. Tínhamos muitas afinidades. Bebemos muito também. Quando levei Ângela em casa ela me convidou para entrar. Acabamos transando na sala do AP dela. Fui embora antes que amanhecesse, Ângela tinha que viajar no outro dia. Ainda me sentia confuso e com medo de ficar sem meu táxi. Voltei pra casa levando comigo uma bebedeira inesquecível, algumas marcas de batom e as pernas bambas. Quanta coisa para uma única noite. Será que tudo isso aconteceu mesmo? Difícil acreditar...



Capítulo III

Acordei tarde no domingo. Algumas chamadas não atendidas no celular. A Ângela tinha ligado cinco vezes, a Cinira duas (ô chata) e um outro número que não reconheci no momento. Uma pizza no microondas, um banho quente, as notícias do Correio da Manhã. A matéria da Ângela. A essas alturas Pelotas inteira já sabia que eu tinha atropelado a limousine de Mary Master. No começo da tarde, mesmo sem meu táxi fui para o ponto conversar e contar a proeza com detalhes para o Giggio.
- Mano véio, então tu acreditou que aquela ricaça vai te pagá?
- É...
- Aquilo é uma puta cheia do ouro, esse tipo de gente não liga pra pobre. Hoje já deve de tá em São Paulo.
- A Ângela entrevistou Mary Master, e ela afirmou que fica mais uns dias em Pelotas.
- Com certeza não vai sê pra te pagá!
- Ela disse que a Mariane Mathias, empresária dela ia me procurar e me dar um carro novo.
- A Mariane Mathias te procurá? Ah! Ah! Ah! Ah!
- Porra Giggio, vai te fudê cara!
- Mano véio, tu é uma besta! Ainda por cima não registrou ocorrência.
- Todo mundo tá sabendo, saiu no jornal seu idiota!
- E daí mano véio? É a tua palavra contra a dela. Quem é que sabe quem tem razão?
- ?
O Giggio nunca me dava moleza. O pior é que ele estava coberto de razão. Eu era uma besta quadrada mesmo. A Cinira logo soube e apareceu correndo preocupada comigo e pra variar me chamando de Pimpolho. Foi difícil me livrar (ô chata). Eu ainda tinha esperança que a empresária de Mary Master ligasse. Certamente eu era uma besta. O que fazer agora. Resolvi ligar para a Ângela e pedir uma idéia. Antes disso o telefone do ponto tocou.
- É pra você mano véio. – falou o Giggio.
Seria a empresária de Mary? Seria a Ângela?
- Alô?
Era a própria Mary Master.
- Como é que tu descobriu esse número? – indaguei.
- Pela placa do seu carro, foi fácil. Tentei ligar antes, mas não deu. Gostaria de te encontrar para me desculpar pessoalmente pelo que aconteceu.
- Sério?! – não podia ser sério.
- Qual o problema, você não pode?
Era inacreditável. Mary Master queria me ver. Mas por quê? Porque eu?
- Claro Mary! Quando e onde? – perguntei já com ar de intimidade e confiança.
Todos os taxistas do ponto me olharam. O Giggio engoliu em seco. Meu celular tocou (era a Ângela) e a Cinira apareceu de novo (ô chata).
- Estarei aí Mary. – concluí num tom de exibicionismo.
Todos no ponto estavam com os olhos arregalados e eu me sentindo o “rei da cocada preta”. Dispensei grosseiramente a Cinira e me despedi carinhosamente da Ângela que estava indo para Porto Alegre. Tomei uma dose de vodka no Cruz de Malta para relaxar e quando consegui cair na real parti para encontrar Mary Master. Ela estava no bairro Simões Lopes, numa ruazinha perto do Clube Ferroviário. Pediu que fosse num lugar discreto para não ser reconhecida. Por sorte além de nós dois só estavam alguns pivetes chutando uma lata de cerveja. Quando ela me viu acenou com uma chave na mão. Naquele momento fiquei meio abobalhado. O que tinha na minha frente não parecia um carro, mas sim uma espaçonave pronta para decolar. Zerinho, zerinho e já emplacada como táxi. Custei para definir uma reação. Não sei como nem o que me deu, mas abracei Mary e comecei a pular feito um débil mental. Acho que foi a vodka. Nós dois parecíamos o Galvão Bueno e o Pelé quando o Brasil ganhou o tetracampeonato. Mary ficou eufórica também, não sei porque, acho que contagiei ela.
- Desculpe pelo incidente, espero que este automóvel possa reparar o mal que lhe causei. – disse ela enquanto eu corria os pivetes pra longe, antes que chutassem aquela latinha no meu carrão.
- Você tá mais que desculpada!!! – certamente eu parecia uma criança com brinquedo novo.
- É bom fazer um homem bonito feliz. – disse sorrindo para mim
- Ãh!...
Num primeiro instante fiquei paralisado com a frase insinuante de Mary, depois reagi. Afinal de contas não nos veríamos mais mesmo. O que quer que acontecesse seria no mínimo uma boa história para contar no ponto de táxi. Pulei então no pescoço dela tal qual um primitivo homem das cavernas. Beijei Mary como se fosse o último capítulo da novela das oito. Ela gostou. Gemeu, suspirou e mordeu minha orelha. Acho que os pivetes bateram a minha carteira durante o beijo. Ainda bem que não tinha documento, só dinheiro. Pouco dinheiro é claro. Entramos no carro e Mary alterou o taxímetro para bandeira dois. Disse que era tudo por conta dela. Disse também que eu não ia me arrepender. O resto dá pra imaginar. Incrível. Eu e Mary Master. Constatei que a vida é realmente perfeita às vezes. Eu e Mary Master. Quem vai acreditar?



Capítulo IV

Eu e Mary. Mary e eu. Acho que nasci para esse negócio de showbuziness. Reinventamos o Korpus Motel. Fumamos todas. Bebemos vinho, suor e água mineral. Trepamos como se o mundo fosse acabar a qualquer momento. Eu e Mary. Mary e eu. Quem diria.
- Não quero sair daqui nunca mais gato!
- O que é isso Mary, a vida continua baby. Tens uma tournê pela frente e eu não sei me prender a ninguém. – eu não parava de falar besteira, acho que foi o vinho que me deixou meio apatetado.
- Minha vida é muito infeliz gato! Sou muito rica, tenho tudo que o dinheiro pode comprar, mas sou a pessoa mais solitária do mundo.
- Como assim você não está namorando o Edward?
Edward Plug era o tal guitarrista da banda de Mary Master. Todos os jornais afirmavam que eles tinham um caso. Os dois chegaram a aparecer como namorados em um programa da MTV. Trocavam beijos em alguns vídeo clips. O cara tocava muito, além de ter a lata do Brad Pitt. Não que eu achasse homem bonito. . .é claro. . .
- O Edu não pode ver mulher na frente, e ainda por cima é um cara violento que vive em função dos interesses da gravadora, fazendo sempre o jogo da mídia. – disse ela com raiva e visível mágoa
Achei melhor não continuar falando no cara. Beijei Mary e deitei seu rosto sobre meu peito para continuar a conversa. Tive a impressão de que ela derramou uma lágrima. Não deu pra ver direito. Sem dúvida ela era muito infeliz.
- O que você viu em mim? – esta sim, foi a pergunta mais imbecil que fiz para uma mulher em toda a minha vida. Eu acho.
- Você me parece uma pessoa sensível e honesta sentimentalmente gato. Eu precisava encontrar alguém que pudesse me ajudar.
- Ajudar a quê?
- É que... eu acho que estou correndo perigo. Quer dizer não sei. Coisas estranhas estão acontecendo. Não sei em quem confiar. Estou bastante confusa.
- E a sua empresária Mariane Mathias, vocês não são íntimas como diz a imprensa?
- Sim... mas ela também anda muito estranha ultimamente. Por favor gato, fique comigo. Eu... não sei o que pode acontecer. . . no fundo eu acho que não sou uma pessoa legal.
- Não diga isso Mary...
- É verdade, e tem mais, a fama só me trouxe dinheiro e solidão. Você é diferente de todos os homens que já conheci, preciso de você gato!
- Tudo bem, mas... – tentei continuar a conversa quando o relógio despertou anunciando que a hora do amor tinha acabado.
Ela me abraçou e começou a chorar de verdade. Acariciei Mary e tentei acalmá-la. Meu celular tocou e não atendi. Era a Cinira (ô chata). Fomos embora. Na saída do Motel pude ver o gurizão emaconhado parado na esquina. Aquele mesmo do dia do acidente. Ele ficou me olhando por detrás dos piercings como se soubesse o que eu estava fazendo. Acho que percebeu Mary escondida no banco de trás. O que ele fazia ali? Como podia saber que estávamos lá dentro? Era estranho. Acelerei meu carro novo pelo Fragata e Mary me pediu para deixá-la no ônibus leito que estava estacionado no Centro de Eventos. Não queria voltar para o Hotel comigo nem tampouco sozinha. Ia telefonar para o Carlos que levaria a limousine até lá. Deixaria Pelotas no outro dia, mas prometeu me ligar o mais rápido possível. Nos beijamos demoradamente e eu parti com uma estranha sensação de perda. Também senti um pouco de culpa, como se eu estivesse traindo a Ângela. Todo mundo sabe que os homens podem e devem trair, afinal faz parte da nossa natureza. Mesmo assim acho que me senti culpado.
No outro dia não fui trabalhar. Passei o tempo todo deitado olhando TV. Era preferível ouvir a programação da Globo que a voz da minha consciência. Estava com saudade da Ângela. E da Mary também é claro.
Que confusão. Mas até que era uma boa confusão.



Capítulo V

Cheguei no ponto mais cedo que de costume, mas o Giggio, é claro, já estava lá. Sorridente como nunca. Imaginei que a prostituta tinha feito um serviço completo nele. Minha Mary tinha partido ontem e nem ligou. Mas meu celular registrava outra chamada não atendida daquele mesmo número desconhecido. Não atendi porque achei que fosse a Cinira. Seria Mary? Achei melhor ligar para descobrir. Já ia ligar quando o Giggio veio subitamente me abraçando.
- E aí mano véio? Se deu bem hein?! Que carrão a ricaça te deu.
- É, nada como conhecer as pessoas certas. – me engrandeci.
- E a repórter do Correio da Manhã? Cê tá comendo mesmo?
O Giggio nunca falava de mulher daquele jeito. Certamente estava muito feliz. Mesmo incomodado com o jeito como se referia à Ângela e à minha Mary Master, achei por bem não criar conflito.
- Fala logo Giggio, qual o motivo de tanta felicidade?
- Estive viajando ontem e encontrei uma casa ideal para mim e para a Débora, lá em Sentinela do Sul mano véio!
- Sentinela do quê?
- Sentinela do Sul mano véio, fica bem pertinho de Tapes. A casa é grande, dá pra morar e fazer a padaria. Mais alguns meses e eu abandono está merda de região sul. A Débora já tá contando as horas mano véio.
- Dá pra imaginar! – debochei.
- Qual é o motivo da ironia? Fica sabendo que se eu não fosse tão teu amigo... te cobria de porrada mano véio! É te cobria de porrada mesmo!
- Calma Giggio! Eu não disse nada, cara.
- Mas pensou mano véio, pensou. Já tô cheio dessa “terrinha do doce” onde não acontece nada. Ainda por cima tá cheio de neguinho otário metido a esperto, assim que nem tu.
- Tá cheio dessa “terrinha que não acontece nada” e vás te socar em Sentinela não sei das quantas, dá um tempo Giggio... Essa é boa!
- Vai te fudê mano véio! Vai tomá no olho do teu cu!
O Giggio repentinamente trocou aquele monte de sorrisos por um ataque de nervos. Nunca tinha visto ele daquele jeito. Bastava alguém lembrar que a Débora era prostituta e pronto, ele perdia as estribeiras. Mas aquele dia extrapolou. Saí de perto. Tomei um cafezinho no Mercado e fui até a banca da Cinira, comprar o Correio da Manhã.
- Oi Pimpolho! Já sabe da última?
- Não Cinira. Me dá o Correio da Manhã faz favor.
- Você vai cair duro Pimpolho. Aquela cantora que te deu um carro novo bateu as botas ontem à noite.
- O quê?!
- É sério. Lê que tá tudo aí. Não se perdeu grande coisa, rico é tudo igual!
Era verdade. Minha Mary morta. Estava na capa do jornal. “Mary Master é assassinada no sul.” A limousine de Mary estava batida no trevo de acesso a cidade de São Lourenço. O corpo dela foi encontrado nas proximidades com três tiros no abdômen e o motorista Carlos estava desaparecido. Abandonei o ponto e fui para casa com um enorme vazio no peito. Era impossível não chorar. Eu e Mary, Mary e eu parecia algo feito sob medida. Foi comoção geral no país. A Rede Globo exibiu vários especiais com a trajetória da carreira de Mary Master. O Fantástico apresentou uma matéria exclusiva, apontando o motorista como principal suspeito. Carlos tinha antecedentes, era viciado em cocaína e segundo a empresária Mariane Mathias, vivia discutindo com Mary sobre o baixo salário. Além do mais não tinha família nem amigos, era o assassino perfeito. A polícia estava atrás dele e o Linha Direta mostrava sua foto diariamente num plantão em rede nacional.



Capítulo VI


Eu e Ângela conversamos muito sobre o caso. Não escondi nada dela. Ia acabar descobrindo meu caso com Mary mesmo, afinal de contas era uma ótima repórter. Criei coragem e contei tudo, quer dizer quase tudo. Eu adorava Ângela, e caso fôssemos ter algo mais sério era melhor jogar limpo desde já.
- Cara tu não acha estranha essa história do motorista? – disse ela.
- Não conheci o Carlos direito Ângela, aliás, não conheci nem Mary direito.
- Mas vocês ficaram juntos e pelo que eu pude entender de maneira bem íntima, né? – Ângela ficou magoada, coisas de mulher.
- Sim... não... quer dizer... não... não quer dizer nada, nunca mais nos encontramos.
- E aquele garoto tatuado que você levou para o show e estava na saída do bar? – não disse para Ângela que na verdade ele estava na saída do motel, ela não iria entender.
- Isto sim Ângela, foi muito esquisito. Como ele sabia que estávamos lá. Será que o acidente não foi premeditado?
- Como assim cara?
- O Carlos e o garotão podem ter combinado o roteiro para acontecer o acidente. Lembra que depois o guri foi para o show de carona com Mary na limousine.
- E daí?
- Daí que pode ter sido uma primeira tentativa de assassinato que não deu certo, afinal eu estava lá.
- Mas porque o Carlos e o tatuado arriscariam suas próprias vidas em um acidente? Além do mais tu podia ter evitado, pois o garoto não exigiu ir para o Centro de Eventos pela Avenida Bento Gonçalves, exigiu?
- É... tu tem razão, mas porque ele tava na porta do Mot..., digo, do bar e me encarou daquele jeito? – ela me bombardeou com um olhar desconfiado, como se soubesse o que realmente aconteceu.
- O que te parece? – tentei não dar tempo para ela pensar.
- Não faço a mínima idéia, mas nós vamos descobrir. – Ângela gostava destes mistérios, dizem que todo jornalista tem um pouco de detetive. Ela ficava visivelmente excitada com a situação.
Ao final da conversa levei Ângela até sua casa. Desta vez ela não me deixou entrar. Coisas de mulher. Fiquei na minha. Voltei para o ponto de táxi acelerando meu carro novo. Milagrosamente o Giggio não estava lá. Segundo os outros colegas ele tinha ido para Sentinela do Sul ver a tal casa para montar sua padaria. Giggio ia mesmo se casar com aquela vadia da Praça Coronel Pedro Osório. Já tinha até colocado o táxi à venda. Que loucura. No outro dia convidei Ângela para tomar uma cerveja no Fábrica de Café. Ela ainda estava chateada, porém fascinada com a história do crime de Mary Master.
- Sabe o que eu descobri ontem lá na redação?
- O que Ângela?
- Que Mariane Mathias tinha uma espécie de “contrato testamento” com Mary Master.
- Como assim? O que é isso?
- É simples, a cantora e a empresária possuíam um pacto financeiro. Caso uma delas viesse a morrer todos os seus bens passariam a ser administrados pela outra. Uma espécie de testamento mútuo eu acho...
- Que coisa mais sinistra.
- Sinistro ou não é verdade.
- Mas então...
- Toda a fortuna que Mary Master tinha, hoje pertence à Mariane Mathias. Que ainda por cima lucra com a carreira da cantora, através de produtos com a imagem de Mary, gravações inéditas e coletâneas póstumas.
- Isso faz de Mariane a principal suspeita não?
- É cara, só que a empresária já estava no Rio de Janeiro no dia do crime o que é um ótimo álibi. Ela é uma pessoa acima de qualquer suspeita, vive praticando obras assistenciais, sustenta ONGs pelo país afora e além do mais era unha e carne com Mary Master.
- Sim, mas Mariane deve ter triplicado sua fortuna com a morte de Mary. E em seguida do crime já foi logo incriminando o motorista sem mais nem menos.
- Tu achas que o Carlos é inocente cara?
- Talvez... ou então algo mais!
- Como assim?
- Talvez ele fosse cúmplice de Mariane, que o tirou do país após o assassinato.
- Sim, Carlos faz o trabalho sujo e Mariane, com uma pequena parte da fortuna de Mary, arruma a vida do motorista que vivia se queixando de problemas financeiros, além de ser viciado.
- Quando estive com Mary ela estava com medo, dizia que coisas estranhas estavam acontecendo.
- O que mais ela te falou? – perguntou Ângela com olhar tristonho.
- Disse não ser uma boa pessoa, parecia carregar um enorme peso na consciência.
- O Edward Plug, que foi namorado dela, falou em uma entrevista que Mary era depressiva e tinha problemas de relacionamento. – Ângela parecia sentir orgulho quando falava mal de Mary. Coisas de mulher.
- Ela comentou alguma coisa sobre o fato dele ser um sujeito violento e colocar a carreira acima de tudo. – rebati a alfinetada com sutileza.
- Edward acaba de lançar seu disco solo, é um ótimo guitarrista!
Ângela queria me tirar do sério, por isso falava tão bem do babaca. Ainda estava magoada. Coisas de mulher. Achei melhor ficar de sangue doce e dar continuidade ao assunto.
- Tu acha que ele tá envolvido?
- É bem possível, afinal quem empresaria a carreira dele também é a Mariane Mathias.
- Mary também se queixou que Edward era mulherengo, talvez tenha sido traída por ele.
- Tudo isso são suposições cara, ainda temos o garotão tatuado lembra?
- Claro que sim Ângela, aquele mostruário juvenil de piercings é uma das peças mais misteriosas neste crime.
- Um motorista, um fã adolescente, um guitarrista e uma empresária. Não te parece muita gente pra matar a tal Mary Master? Acho que estamos viajando, tu anda lendo muito Agatha Christie cara. . . Ah! Ah! Ah! – Ângela sorriu, ela tinha um sorriso sensual que mexia comigo de verdade.
- Certamente nem todos devem estar envolvidos gata.
- Mas alguém matou Mary Máster, isso é um fato!
- Meu palpite principal ainda é a Mariane Mathias!
Ficamos horas discutindo sobre o caso e imaginando as mais diversas possibilidades. Quanto mais a gente bebia mais suspeitos apareciam. Convidei Ângela para fumar um e ela recusou, disse que queria estar inteira o resto da noite. Segundo ela fumar atrapalhava a libido. Percebi que a noite prometia. Bebemos, bebemos e bebemos.
Aquele papo de crime já estava ficando cansativo. Uma tal de banda Doidivanas (vê se pode) subiu no palco do Fábrica de Café e começou a tocar. Todo mundo gostava dos malucos. Eu não. Paguei a conta e fomos embora. Minha expectativa era que Ângela me convidasse para entrar. E convidou. A noite realmente prometia. Ela já estava colocando a chave na fechadura quando eu disse.
- Sabe Ângela, aquele ponto de táxi sem o Giggio não é a mesma coisa.
- E para onde foi o seu amigo?
- Ele está vendo uma casa, para se casar e montar uma padaria.
- Que legal! – disse ela apanhando da fechadura
- Legal porra nenhuma! Imagina só, vender o táxi para casar com a Débora.
- Quem é Débora? – perguntou ela, percebendo que estava com a chave trocada.
- Tu não conhece, é uma prostituta que faz ponto na Praça Coronel Pedro Osório.
- E daí? – outra pergunta displicente, mas já com a porta aberta.
- Como e daí Ângela? Meu amigo quer se casar com uma vagabunda e tu diz e daí?
- Que coisa feia cara! Como tu é preconceituoso. – falou ela entrando no AP.
- Corta essa Ângela, casar com uma prostituta é um pouco demais.
Ângela não me beijou nem disse tchau, apenas bateu a porta do apartamento na minha cara. Coisas de mulher. Não ligou por uns dez dias, então eu liguei para ver se ela pedia desculpas. Não pediu, mas mesmo assim resolvemos ir ao cinema e conversar mais sobre o crime de Mary Master. Aos poucos tudo foi voltando ao normal entre nós.



Capítulo VII

Naquela manhã eu estava esperando Ângela no Café Aquários. Ela mandou uma mensagem de madrugada dizendo ter novidades sobre o caso. Ângela ainda se sentia traída desde que soube que eu e Mary Master tivemos um casinho momentâneo. Mulher é mesmo um bicho cheio de frescura, ciúme de uma defunta. Coisa mais absurda. Ó minha Mary. Mary e eu, eu e Mary, era perfeito demais para acontecer. Pedi um café e um sanduíche de cheester quando Ângela chegou com as últimas notícias.
- Cara tu nem imagina o que aconteceu!
- Fala duma vez Ângela, pela hora que tu mandou aquela mensagem deve ser importante.
- Recebemos uma informação bombástica na redação do Correio da Manhã, mas já era de madrugada, tínhamos fechado a edição e não deu tempo para publicar. Hoje todos os tele-jornais devem noticiar.
- Já sei, descobriram o paradeiro do Carlos!?
- Não!
- O que então?
- A empresária de Mary foi encontrada morta.
- Mariane Mathias?
- É, parece que nossa principal suspeita era inocente.
- Como aconteceu?
- Foi assassinada a tiros também, o calibre da arma confere com a que matou Mary Master. Claro que a culpa continua recaindo sobre o Carlos.
- Essa história tá cada vez mais enrolada, gata.
- Mais um crime no Rio Grande do Sul.
- Mariane estava aqui?
- Sim, foi vista pela última vez saindo de um orfanato em Viamão, depois encontraram seu corpo boiando no Guaíba.
- Um orfanato! O que ela fazia lá?
- Ela sustentava algumas instituições do gênero, lembra?
- Mas porque veio a Viamão fazer caridade pessoalmente?
- Não sei.
- Essa história esta mal contada...
- É, parece que voltamos à estaca zero.
Terminamos o café e eu deixei Ângela na redação. O assassinato de Mariane Mathias tornava o caso mais complexo ainda. Foi um dia de pouco movimento no ponto. Pelotas estava devagar mesmo. Todos sempre se queixando dos moto-boys, o Giggio beijando a prostituta na boca bem no meio da calçada (imagina só se tem cabimento), muito papo furado e as costumeiras ligações da Cinira (ô chata). Tudo normal. Tudo como sempre foi. Mas aquele dia custou a passar. Eu continuava muito intrigado com a morte de minha Mary. Mariane Mathias era o assunto do momento. Outro crime abalando o país. Muita paranóia na minha cabeça. E acho que ainda por cima estava me apaixonando pela Ângela. Não sei. No final do dia nos encontramos e fomos para um bar.
Ângela já estava pedindo a segunda cerveja quando eu lembrei de algo que parecia realmente importante. Talvez a chave do mistério. As ligações registradas no meu celular que não atendi. Contei imediatamente para Ângela, que a princípio não demonstrou muito interesse.
- E o que tem de mais nisso cara?
- Ora Ângela, uma ligação foi feita após o acidente e a outra é possível que tenha sido até mesmo na hora do crime.
- Liga aí então para ver quem atende.
Liguei e o telefone estava desligado ou fora da área de cobertura. Mas a pista com certeza se encaixava no crime. Ângela disse que tinha como descobrir de quem era o número.
Deixamos os crimes de lado e passamos o resto da noite namorando. Ela me confessou que sempre teve fantasias com taxistas. Coisas de mulher. Ângela era uma companhia e tanto. O clima estava tão bom que desliguei o celular para não ter perigo de receber alguma ligação inconveniente da Cinira (ô chata). Muitos beijos, carinhos, cerveja e juras de amor.
Paguei a conta com todo o dinheiro que tinha ganhado na tarde (os moto-boys iam acabar nos matando de fome) e fomos embora. Quando chegamos no AP Ângela acertou a chave de primeira e, ao contrário da última vez, me convidou para entrar. Entrei. E como entrei. Que mulher maravilhosa era Mary, digo, Ângela. Eu devia estar mesmo me apaixonando. Logo eu, quem diria...



Capítulo VIII

Mal cheguei no ponto de táxi (o Giggio já estava lá, como sempre) e a Ângela ligou.
Achei estranho afinal de contas tínhamos passado a noite juntos.
- Cara tu não sabe da maior, te segura que tu vai cair durinho.
- Fala logo Ângela.
- O número que te ligou confere com o celular do Carlos.
- Como é que tu descobriu isso tão rápido criatura? Quando sai daí tu ficou dormindo! – sem dúvida a Ângela era muito estranha, pensei na hipótese dela estar envolvida. Podia ser mais um desses crimes passionais. Que viagem a minha, isso que nem fumei hoje. Mas que ela era estranha era.
- Sou uma repórter já esqueceu? – retrucou ela com voz de quem tá se achando
- Mas o Carlos? Porque ele me ligaria?
- Talvez para tentar um acerto de contas devido ao acidente, poderia estar com medo de perder o emprego por ter destruído o teu táxi.
- Sim, mas foram dois telefonemas lembra? E o outro?
- O segundo foi no dia do crime, né?
- Exatamente.
- É muito esquisito.
Não chegamos a nenhuma conclusão. Fiquei de pegar Ângela na redação do Correio da Manhã ao final do expediente. Liguei várias vezes para o número do celular do Carlos, mas este permanecia fora da área de cobertura ou desligado. Uma vez foragido obviamente ele não ficaria com o telefone, então desisti. O jeito era relaxar e manter a rotina. E foi o que fiz.
- Cinira me dá o Correio da Manhã.
- E aí Pimpolho? Muito dodói ainda com o crime da cantora?
- Vê se não enche tá.
Cinira era grudenta. Parecia feliz com a morte de Mary... Espere aí...
Desde que rompemos ela nunca mais desgrudou do meu pé. Cinira tem parentes em São Lourenço. Se não me engano uns tios. Será que...
- Cinira... – olhei para ela com ar de desconfiança.
- O que foi Pimpolho?
- O que é que tu acha desse crime? – perguntei sugestivamente.
- Acho que ninguém sabe porra nenhuma, Pimpolho.
- Por quê?
- A vagabunda chegou a te dizer o verdadeiro nome dela?
- Não, mas se não me engano era Maristela alguma coisa...
- Pois é Pimpolho, Mary Master se chamava na verdade Maristela Macedo de Paula.
- E daí?
- Daí que esse caso pode ser bem mais complexo do que todos estão pensando. Um mês antes de Mary ser assassinada, morreram o ator Marquinho Matarazzo e o Diretor do SBT João Copolla. O que isso te parece Pimpolho?
- Sei lá... O que tem a ver uma coisa com a outra?
- Tá na cara que o assassino é o mesmo!
- Cinira, tu acha que...
- Isso mesmo Pimpolho. Veja bem, Marquinho Matarazzo, João Copolla, Maristela Macedo (ou Mary Master), Mariane Mathias. São crimes em série, todos famosos e todos com a letra M.
- Mas e o João Copolla?
- Nome artístico Pimpolho, na verdade ele se chamava Mauro Medeiros.
- Um “serial killer” então?
- É pimpolho, tipo “O colecionador de ossos” ou “Seven”. Sacou?
A chata da Cinira até que era esperta para algumas coisas. Mas com certeza ela não matou Mary Master. Sua teoria, porém tinha fundamento. Fiquei ainda mais confuso. Tentei conversar com Giggio sobre o assunto, mas ele só falava na padaria e na Débora da Praça. Além de insistir em vender o táxi para qualquer um que chegasse perto do ponto. Mas e o garotão tatuado? E os telefonemas de Carlos, para mim? Apesar de tudo acreditei naquela história doida. Até a Ângela me dizer que o ator Marquinho Matarazzo morreu de derrame cerebral e o João Copolla se chamava Lauro Medeiros, e não Mauro como afirmou a Cinira. Além de chata era também burra.



Capítulo IX


Ainda bem que Ângela não chegou a acender o baseado quando tocaram a campainha. Fui atender. Era um ex-colega de ginásio, o Ferreira. Agora delegado Ferreira.
- Boa noite, que bom que te encontrei em casa! – disse ele com jeitão de quem tá podendo.
- Boa noite Ferreira, há quanto tempo hein?! – tentei demonstrar tranqüilidade visivelmente intranqüilo.
- Precisamos ir até a delegacia levar um dedo de prosa amigão.
- Como assim Ferreira? Por quê?
- Fica frio são só umas perguntinhas sobre o assassinato da cantora Mary Master.
- Mas porque eu?
- Tu sabe muito bem por que. – respondeu o Ferreira insinuando qualquer coisa.
Ângela ficou mais nervosa do que eu. Fomos todos até a DP no carro da polícia. O Ferreira não me tirava o olho. O telefone tocou, era a Cinira (ô chata). Mal entramos na sala do Ferreira e ele foi logo começando o interrogatório.
- Qual era a tua ligação com a cantora?
- A gente teve apenas um pequeno namoro.
- Tu e a Mary Master? – o Ferreira sorriu, é claro que não acreditou.
- É.
- Vocês dois foram vistos em uma ruela no bairro Simões Lopes um dia antes do crime acontecer, por quê?
- Ela ligou e pediu para me encontrar lá, não sei ao certo o porquê. Acho que queria se esconder do público.
- Sei... Mary Master em pessoa te ligou, e marcou um encontro numa viela. Posso saber qual o motivo?
- Bom Ferreira, ela tinha prometido me dar um carro novo. Tu deve saber do acidente, saiu no Correio da Manhã, o meu táxi ficou muito danificado.
- Um dia antes do assassinato vocês entraram no Centro de Eventos no teu carro, e ela ficou lá sozinha até que o motorista fosse buscá-la. Por quê?
- Ela pediu para ficar lá. O ônibus leito da banda ainda estava no Centro de Eventos e Mary não queria voltar para o hotel.
- Mas voltou com o motorista!
- Não queria voltar para o hotel comigo. Para com isso Ferreira! – me alterei e ele sorriu de novo.
Ferreira ficava andando na minha volta e fumando um cigarro mentolado que fedia pra caralho. Era impossível não ficar nervoso. Eu podia ouvir os passos da Ângela no corredor ao lado andando pra lá e pra cá sem parar. Era impossível não ficar nervoso. Minha história não fazia o mínimo sentido. Era impossível não ficar nervoso. Só parei de degustar minhas unhas quando o Ferreira apagou o cigarro e disse:
- Um colono estava pedindo carona no trevo de acesso à cidade de São Lourenço bem no dia do crime, e ele testemunhou. Tu sabia?
- Não...
- Sabe o que ele disse?
- Não, não faço a menor idéia. – ele parou bem na minha frente e me olhou nos olhos.
- Ele disse que viu passar uma limousine e logo em seguida um táxi.
- E daí Ferreira? Quantos táxis passam na BR 116 por dia? E como é que o colono sabia que a limousine era a de Mary Master? – senti que me sobrou argumento e fiquei mais confiante, mas o Ferreira não gostou do meu ar de superioridade e contra-argumentou imediatamente.
- Só que o colono viu a placa do táxi e pelo registro do DETRAN o carro é teu, e aí o que me dizes?
- Isso é impossível Ferreira... – acho que minha boca estava tremendo.
- Ferreira não, delegado Ferreira! – ele alterou a voz.
- Mas nós se-sempre fomos amigos... – tenho certeza, minha boca estava tremendo.
- Sabe o que eu acho amigão? Eu acho que tu tava chantageando a cantora por algum motivo que eu não sei. Na tentativa de intimidar ela atropelasse a limousine em plena Avenida Bento Gonçalves. Não satisfeito em tirar um carro zero dela, levasse a mina até o Centro de Eventos, ameaçando ela até que o motorista aparecesse. Algum tempo depois tu terminou o serviço na rodovia. Não é?
- Cê tá louco Ferreira! A história do acidente foi real saiu até no Correio da Manhã. – fiquei apavorado, era impossível não ficar.
- Numa matéria assinada pela Ângela, tua namoradinha. Que estranho não? – ironizou ele.
Não adiantava mais argumentar. O Ferreira não acreditaria em nenhuma palavra que eu dissesse. De uma hora para a outra me tornei mais um suspeito. E um dos principais. Disseram que para continuar as investigações eu ficaria detido porque não era primário. Uma vez com dezenove anos me pegaram na saída do Satolep com algumas gramas de cocaína no boné. Coisa de guri. Ao menos encontrei uma utilidade para ter concluído a Faculdade de Geografia. Uma cela especial. Liguei para a chata da Cinira e pedi que ele guardasse meu táxi. Não deu tempo de pedir à Ângela, pois ela saiu correndo da DP atrás de um advogado e esqueceu o celular. Também liguei pro Giggio e pedi que me trouxesse alguns objetos pessoais.
- Pode deixá que eu cuido de tudo mano véio. Não esquenta não, quem não deve não teme.
- É Giggio, acho que tô fudido.
- Eu disse que aquela ricaça só ia te trazer problemas, não disse?
- Porra Giggio, corta esse papo, não vê que eu tô na pior?
- Agüenta firme aí que nós vamo te ajudá. Força mano véio.
O Giggio era meu amigo. Discordávamos de quase tudo, mas nas horas difíceis ele sempre me ajudava. Imaginem, eu o assassino de Mary Master. Que coisa sem fundamento. Mas o Ferreira estava convicto. E ficou mais ainda quando viu no meu celular as chamadas não atendidas de um telefone que ele logo descobriu, era do Carlos. Eu tava fudido mesmo.
- Qual era a sua relação com o motorista?
Ficamos numa salinha, onde o Ferreira me fez essa mesma pergunta umas quinhentas mil vezes. De todas as formas, por todos os ângulos e com todas as construções gramaticais possíveis. Claro que também não me escapei de levar uns cascudos. Mas fiquei firme, o Giggio tinha razão, quem não deve não teme. Afinal de contas eu sabia que não tinha matado Mary Master. Ó minha Mary... Porque teve que ser assim? E agora?



Capítulo X

No presídio parecia que as horas custavam mais a passar. Era sem dúvida a maior enrascada de toda a minha vida. A Cinira só parou de ligar porque apreenderam meu celular. Mesmo assim mandava presentes todo dia. Flores, bombons, jornais, revistas e sempre algum cartãozinho com dizeres do tipo: “Seja forte Pimpolho!”, “Estamos com você Pimpolhinho!”, entre outros. Como todos os presentes eram revistados é óbvio que virei motivo de chacota entre os presos e os guardas. Todos já me chamavam de “pimpolhinho”. Bem que o assassino podia ter matado a Cinira ao invés da Mary. Ó minha Mary...
O Giggio também aparecia seguido por lá. Estava muito feliz porque a Débora tinha diminuído o horário de serviço.
- Agora ela fica só meio turno no serviço mano véio!
Coitado do Giggio, ele tinha um bom coração. Eu que às vezes era muito insensível com meu amigo. Ele ficava me dando força e tentando me distrair. Falava muito na futura padaria, até me ensinou algumas receitas. Pão amanteigado, pão de queijo, pão integral, etc. Mesmo assim o tempo não passava. A Ângela sumiu por muitos dias. Imaginei que ela tivesse me abandonado, também agora eu era um presidiário. Um dia o Ferreira permitiu que eu fizesse uma ligação e tentei saber o que se passava.
- Não demora no telefone “pimpolhinho”! – disse o agente penitenciário com ar de deboche.
Maldita Cinira. Liguei para Ângela. Ela estava na redação do jornal quando atendeu, era uma barulheira infernal.
- Desculpa cara, é que estou colhendo algumas informações, falta pouco. Também estou morrendo de saudade. – gritou Ângela no meio daquela zoeira.
- Tudo bem é que tu não apareceu mais... eu pensei que...
- Calma, eu tô muito perto de conseguir respostas, as coisas agora estão se encaixando.
- O que tá acontecendo? Fala Ângela eu preciso saber!
- Agüenta aí que eu tenho a solução para tudo cara.
- Como assim Ângela, eu estou na cadeia. Cadeia sacou?
- Cara eu acho que descobri o assassino, só estou juntando as provas, fica frio. Não sai daí. – Ironizou ela e em seguida desligou.
Era uma mulher fascinante, mas com um senso de humor às vezes inadequado. Ângela parecia ter certeza do que estava dizendo, mas por mais que eu confiasse nela era impossível não ficar angustiado. Como posso ser condenado pela morte de Mary Master? Logo eu. No outro dia Ângela finalmente foi me visitar.
- Cara descobri que Mary tinha uma irmã.
- E daí Ângela?
- Daí que alguns anos atrás esta irmã desapareceu.
- Desapareceu?
- Fugiu de Casa. O nome dela era Margarida Macedo de Paula, ficou grávida de um Senador lá do norte, foi rejeitada por ele e por Mary, então sumiu.
- Como assim Ângela? Grávida de um Senador?
- O Senador Chico Albuquerque era casado e teve um caso com Margarida, ela engravidou e ele negou a paternidade, com o poder que tinha foi fácil não assumir a responsabilidade. Margarida recorreu à família, ou seja, à irmã Mary Master. As duas eram órfãs e desde que Mary enriqueceu com a música, Margarida passou a fazer de tudo para ser igual a ela.
- Como é que tu descobriu tudo isto Ângela?
- Tenho minhas fontes cara, sou uma repórter esqueceu?
- Então continue.
- O Senador prometeu se divorciar, casar com Margarida e lhe dar uma vida com mais privilégios que a de sua irmã popstar. Quando foi abandonada por ele, Mary Master, preocupada com a carreira, também rejeitou a gravidez de Margarida que sumiu do mapa. Ela está desaparecida até hoje.
- Impressionante. . . Por isso Mary dizia não ser uma boa pessoa, o remorso devia ser enorme.
- O melhor de tudo cara é que segundo informações dessas fontes que tenho, a irmã de Mary pode estar aqui mesmo, morando no Rio Grande do Sul.
- Aqui no estado?
- É, exatamente.
- Mas Ângela, como ela veio parar aqui e por quê?
- Taí o que eu ainda não sei cara. Mas com a morte de Mary Master, Margarida por direito seria herdeira de toda a sua fortuna.
- Se não houvesse o tal “contrato testamento” feito por Mariane Mathias, para administrar os bens de Mary caso ela morresse.
- Contrato este que Mary Master fez para se proteger de Margarida.
- Como Mary era ingênua. . . que atitude mais idiota!
- Exato cara bastava matar a empresária também para ficar com toda a herança.
- Mas Ângela tu não acha que ao invés de matar a irmã e a Mariane, seria bem mais fácil insistir na investigação de paternidade. Por mais poder que o Senador tivesse, alguma coisa Margarida ia acabar lucrando, nem que fosse chantageando ele com um possível escândalo político.
- Margarida deve ter pensado nisso, só que o Senador Chico Albuquerque já tinha passado por um escândalo político que acabou com sua vida. Ele foi condenado por envolvimento com o narcotráfico, perdeu o mandato e quase toda a fortuna que tinha. O pouco dinheiro que sobrou é para pagar a quimioterapia, pois ele descobriu um câncer na próstata já bem avançado. Chico Albuquerque hoje está terminando seus dias numa casa geriátrica no interior de Alagoas, sozinho e cada vez mais pobre.
- Então Margarida matou a irmã.
- As duas já tinham se desentendido antes, Margarida roubou o namorado de Mary.
- Quem o guitarrista?
- Isso mesmo, certa vez Mary Master pegou Edward Plug e Margarida transando no camarim. Por isso tinha tanta mágoa do cara e dizia que ele era mulherengo.
Pobre Mary! – pensei.
- Mary Master não podia tirar Edward da banda e num primeiro momento não quis abandonar sua única irmã. Mas o caso de Margarida com o Senador Chico Albuquerque foi a gota d’água.
- Mas Ângela, porque ela ainda não apareceu para reivindicar a herança?
- Deve estar esperando baixar a poeira e o caso ser dado como resolvido, ou seja, a justiça te condenar.
- Claro, aí a irmã desaparecida espera um tempo e surge para tomar o que é seu por direito.
- Vamo lá cara, pode admitir que a tua namoradinha é um gênio! – Quando Ângela se exibia daquele jeito ficava ainda mais atraente. Definitivamente eu estava apaixonado por ela.



Capítulo XI

A Ângela era brilhante mesmo, e pensar que com a Morte de Mariane Mathias meu principal suspeito passou a ser o gurizão emaconhado. Só depois descobri que ele estava perto do Korpus Motel porque tinha uma boca de fumo por ali. Aliás, o traficante da boca agora estava na cela ao lado. Não sei como pude imaginar alguma relação daqueles piercings tatuados com o assassinato de Mary. Que falta de imaginação a minha. Ah minha bela Mary, quanta coisa podia ter acontecido entre nós...
Ângela também descobriu que o celular que me ligou estava no nome do Carlos, mas na verdade era de Mary. Coisas de popstar. Ela ligou para me entregar o táxi e depois na hora do crime. Provavelmente para pedir socorro. Pobrezinha, e eu não atendi. Também com a Cinira incomodando todo o tempo quem poderia imaginar.
A polícia também teve seus méritos e as investigações constataram que o número da placa que o colono viu era do meu antigo táxi. O depósito do guincho, onde o carro ficou após o acidente com a limousine de Mary, foi arrombado e estranhamente só levaram aquele veículo. Quem roubou se prestou para consertar o táxi batido somente para tentar me incriminar. O plano era ótimo, mas todos sabem que crimes perfeitos não existem.
O advogado conseguiu um hábeas corpus. Ângela estava com o delegado Ferreira tentando descobrir o paradeiro de Margarida, então passou no ponto e pediu para que o Giggio me pegasse na saída do presídio. Lá estava ele escorado no táxi com aquela cara de sempre. Nos abraçamos por alguns instantes, e entramos no carro.
- E aí mano véio? Que sinuca tu te meteu, hein!?
- É Giggio, essa foi foda.
- Não te falei que quem não deve não teme?
- Tu tinha razão, estou tão feliz que vou te dar uma grana extra. – regulei o taxímetro dele para bandeira dois.
- Vamo nessa então mano véio, teu táxi tá te esperando lá no ponto.
- Antes que eu me esqueça Giggio, muito obrigado por tudo!
- Não tens nada pra me agradecer, deixa de ser bobo. Agora é vida nova e guerra aos moto-boys!
- É sério Giggio, tu sempre foi muito legal comigo, valeu mesmo!
- Que é isso mano véio, amigo é pra essas coisas.
- Nessas horas é que a gente dá valor às pessoas Giggio, em nenhum momento esqueci as palavras de apoio que tu me disse. E a minha Ângela então, é uma gata muito esperta, ela até descobriu o verdadeiro assassino de Mary Master.
- Sério mano véio? Fala duma vez quem é o criminoso?
- A criminosa. Mary Master tinha uma irmã que ao que tudo indica está morando aqui no Rio Grande do Sul, neste instante o Ferreira está tentando localizá-la.
- Tá brincando. . .
- É verdade o nome dela é Margarida, estava só esperando a minha condenação para aparecer e meter a mão na grana.
- Mas e a Mariane Mathias? Isso não faz sentido mano véio!
- É uma longa história, essa tal Margarida ficou grávida do senador Chico Albuquerque, um político lá da região norte, depois brigou com Mary e foi dada como desaparecida.
- Que maluquice mano véio.
- Põe maluquice nisso, mas o que importa é que estou livre. Agora quero curtir meu carro novo, minha namorada e fumar um de vez em quando pra não perder o hábito.
- Sei...
- A pobre da Mary devia se sentir muito culpada, ela abandonou a irmã num momento difícil, fez um testamento absurdo para a empresária. . . ah, e ainda por cima tem o guitarrista canalhão! Depois te conto detalhes quando chegarmos no lá ponto!
- Que coisa mais absurda isso tudo mano véio!
Acho que o Giggio não acreditou na história. Ficou sério e não disse mais nada. Que saudade de dirigir meu táxi pelas ruas esburacadas de Pelotas. Ah, minha doce e úmida Pelotas. Liguei o rádio e estava dando um tributo à Mary Master. O Giggio baixou o volume.



Capítulo XII

- Droga mano véio! Puta que pariu!
- O que foi Giggio? Calma cara.
- Tu não entende porra nenhuma mesmo mano véio.
De repente eu entendi tudo. O Giggio foi pegando o caminho da BR 116 e o silêncio tomou conta do táxi. Ele detestava Mary Master. Sua primeira viajem para Sentinela do Sul coincidia com o assassinato de Mary e depois viajou de novo na mesma época que Mariane Mathias foi morta em Viamão. Certamente Débora era o nome de guerra da prostituta que se chamava Margarida. Fiquei estático. Meu amigo um assassino. Logo o Giggio. E eu sabia de tudo. E o pior de tudo, o Giggio sabia que eu sabia.
- E o Carlos onde está? – perguntei para quebrar o silêncio e tentar controlar a situação.
- Nadando no São Gonçalo mano véio.
- Quer dizer então que a Débora tem um filho? E onde ele está Giggio?
- Num orfanato em Viamão, aquelas vagabundas passaram a sustentar a instituição para tentar ficar com o Chiquinho. Elas destruíram a vida da minha Margarida mano véio! Não adianta tu não vai entender nunca, agora é tarde...
Ele estava nervoso e eu mais ainda. O táxi entrou na rodovia e ele acelerou. Ele já estava chorando quando puxou um revólver que nem imagino o calibre. Com o susto me virei no banco e apoiei as costas na porta. Ele por sua vez se assustou com o meu movimento brusco e me apontou a arma. Isso não pode estar acontecendo. Logo o Giggio.
- Não tenta nada mano véio, não te faz de espertinho que te mato aqui mesmo! – gritou chacoalhando a arma e olhando um pouco para mim e outro para a estrada.
- O que cê vai fazer comigo Giggio? Tá louco, nós somos amigos!
- Agora nada mais importa, tu vai nadar com o Carlos no São Gonçalo mano véio! Fica frio que vás encontrar a vagabunda da Mary Master logo logo...
Percebi que ia acabar morrendo mesmo, então tive um súbito ato heróico. Talvez o único em toda a minha vida. Saltei pra cima do Giggio e agarrei o revólver. O carro estava a uns noventa quilômetros por hora e começou a dançar na pista. Enquanto isso nós trocávamos socos e cabeçadas. Ambos agarrados no revólver e já sem cinto de segurança. Até que aconteceu o primeiro tiro.
- Para Giggio cê vai nos matá!
A bala arrancou o taxímetro que bateu na testa do Giggio. O carro finalmente capotou. Nos filmes de ação parece tão divertido. Saltamos fora uns vinte metros para fora da pista e o veículo ficou com as quatro rodas para cima. Foi feio. Muito feio. Levamos alguns instantes para perceber que estava tudo bem. Ou melhor nada bem. Eu estava tentando fugir pela janela quando o Giggio me puxou pela perna e começou a me bater com o taxímetro. Sempre fui muito bom de briga, mas ele me pegou de jeito. Sentou na minha barriga e não parou de bater. Eu enxergava aquela bandeira dois do taxímetro indo e vindo em direção ao meu rosto. Já estava quase perdendo os sentidos. Minha cara devia parecer a de um adversário do Popó no último round. O sangue começava a escorrer pelos meus olhos quando toquei alguma coisa com a mão esquerda. Acho que meu telefone estava fora do carro, mas deu para ouvir a chamada. Era a Cinira (ainda bem). O Giggio seguia batendo forte, mas baixou a guarda quando ouviu o toque do celular. Até que aconteceu o segundo tiro.
- Mano véio. . .
Não vi onde a bala pegou. Aliás, não vi onde “as balas” pegaram. Fechei os olhos e descarreguei a arma no Giggio. Era sangue pra todo lado. Um pouco meu um pouco dele. O mais interessante de tudo é que ao contrário dos filmes de ação o carro não explodiu nunca. Sai pelo vidro de trás e ainda caminhei alguns passos antes de desmaiar de vez.
Muitas viaturas com sirenes barulhentas trancaram o tráfego da BR 116 por horas e eu não vi nada. Acho que o Ferreira andou passando umas cantadas na Ângela e eu não vi nada. A Débora, que na verdade se chamava Margarida e era irmã de Mary Master, confessou o crime e foi presa logo em seguida e eu não vi nada. A Cinira levou flores e me deu uns beijos no hospital e eu não vi nada. O Correio da Manhã publicou uma matéria especial sobre a conclusão do caso, inclusive com fotos minhas, e eu não vi nada. O Xavante foi goleado num Bra-pel e eu não vi nada (graças a Deus). Muita coisa se passou durante uns cinco ou seis dias e eu não vi nada. Lá pelas tantas uma imagem fora de foco da Ângela foi surgindo e junto com ela um enfermeiro enorme querendo me aplicar uma injeção maior ainda. Tentei manter a dignidade enquanto ele me virava de bruço e a Ângela ria. Não podia ser este um final feliz.

. . .

Foi exatamente assim que aconteceu. Alguns meses depois nossa vida era pura festa. Tudo na paz. Algumas cicatrizes na testa e um dente quebrado. Mas tudo na santa paz. A fortuna de Mary Master ficou toda para a gravadora que acabou me dando uma pequena recompensa. Coisa pouca, mas o suficiente para comprar duas motos e contratar dois motoqueiros (finalmente os moto-boys iam ver só).
E terminou tudo bem mesmo. Até o cafajeste do Edward Plug se converteu e passou a tocar somente música gospel. Logo que descobriu que o Chiquinho era filho dele e não do senador, o guitarrista bonitão (não que eu ache homem bonito, é claro) mudou de vida e virou pastor evangélico. Ele e o menino agora moram juntos e estão muito felizes.
Um tal de Sollano, primo da Ângela lá do interior, escreveu um livro sobre o assassinato de Mary. Claro que eu era o personagem principal. Dizem que com a venda do livro ele ficou rico. Isso sim eu não acredito mesmo. Não lembro de ter ligado o taxímetro, mas estava marcando bandeira dois quando ela começou a me beijar. Mistério. Seria Mary? Estávamos na areia do Laranjal. As pernas da Ângela não paravam de me olhar. Tudo resolvido finalmente, sem falar no carrão zerinho, que mesmo não sendo mais zerinho ainda me acompanhava. Joguei fora o que sobrou da marica e ficamos sorrindo chapadamente. A Atlântida FM tocava uma balada romântica de Mary Master. Ângela rapidamente desligou o rádio. Coisas de mulher. A essas alturas nossos corpos já estavam um sobre o outro. Suspiros, uma calcinha no freio de mão e um pé descalço no painel. Quando a Cinira ligou (ô chata).




F I M


OBS: Este livro está liberado para download na íntegra (com capa, paginação correta, prefácio, ficha técnica, etc.) no site sidneybretanha.com.

Nenhum comentário:

Postar um comentário